sexta-feira, 19 de março de 2010

"A harmonia pode ser quebrada por um sussurro"






Tanto o filme, A Época da Inocência (The Age of Innocence, 1993), como o romance original de Edith Wharton (vencedor do Pulitzer de 1921 e já adaptado duas vezes antes para o cinema, em 1924, versão muda, e em 1934), fazem uma densa crítica à sociedade americana do século XIX, focando especialmente a “aristocracia” da Nova York daquele tempo; uma sociedade avara em virtudes, onerosa em futilidades. O desejo constante de aparentar o que não eram, almejando similitude com a aristocracia européia, tornava-os nobres fictícios e ridículos genuínos. Não raro essa burguesia com ares aristocratas via-se frustrada, sendo a frustração um sentimento que sempre causa nada menos que uma infelicidade conformada. Essa sociedade tentou, sem muito êxito ou com êxito apenas aparente, emular os nobres que eles, burgueses, tiraram do poder, coisa que sempre acontece. Martin Scocerse retrata tudo isso com muito esmero e o filme dá gosto de ver, pela beleza de cenários e figurinos, numa reconstituição de época primorosa. O elenco principal está excelente, Daniel Day-Lewis como Newland Archer, um homem dono de uma paixão tão forte quanto pusilânime; Winona Ryder como May, a esposa convenientemente ingênua; e Michelle Pfeiffer (especialista em personagens sofridas) como Olenska, uma mulher que sacrifica tudo menos a integridade de sua consciência. A condessa Olenska tem a coragem (devido à época) de separar-se de seu marido, um nobre europeu. De volta da Europa, ela tem fria e hipócrita recepção da sociedade nova-iorquina; não a querem receber; sua família manda convites que recebem o declínio de todos, e a situação só reverte-se em favor da condessa quando uma nobilíssima casa decide interferir e fazer a própria festa de recepção da condessa; mesmo considerando má coisa receber a divorciada, essa sociedade considera coisa muito pior não aparecer em festa de casa tão solene. Tudo isso é mostrado com uma beleza e requinte altíssimos. Para definir o desquite, o advogado responsável é o mesmo que tomou partido no caso da recepção à condessa e é, também, o marido de sua prima May. Newland Archer é um romântico estagnado, que vê na atitude da condessa não apenas romantismo, mas coragem e fuga; não demora para que se apaixonem, fazendo brotar mãos ávidas para descortinar o pano da tragédia. Tudo é narrado pela grande Joanne Woodward, de as Três Máscaras de Eva. Este é um filme muito especial na história do cinema e na cinebiografia de Martin Scorsese, que consegue, mais uma vez, fazer um belo estudo de sua querida Nova Iorque. A obra é cheia de sutilezas e a cada vez que a vemos percebemos novas nuanças, pois os detalhes, em todos os níveis, são tão ricos quanto implacáveis. Os maravilhosos diálogos tem cores escarlates de tão brutais, evidenciando a crueldade do romance, em cenas como a do píer; Antônio Abujamra chegou a afirmar sobre o filme “Nada mais violento sem mostrar a violência”. A época era a da inocência, destruída pelas mãos em luva de seda das convenções sociais. Ganhou o Oscar de figurino e o Globo de Ouro de atriz coadjuvante para Winona Ryder. Magnífico filme.

quarta-feira, 3 de março de 2010

Avatar




Esperei muito tempo para ver esse filme, assim como esperei por Titanic, pois gosto do trabalho do James Cameron e gosto de efeitos especiais. Mas não posso dizer que Avatar é maravilhoso apenas pelo aspecto tecnológico. E é justamente o aspecto tecnológico o único ponto alto do filme. James Cameron já fez um filme que foi muito elogiado apenas pelo visual, O Segredo do Abismo, que hoje em dia é visto com bons olhos, talvez isso ocorra com Avatar daqui a alguns anos. Avatar (Avatar, 2009) brilha muito, mas não é uma jóia preciosa. Tem um enredo que apesar de ser basicamente o mesmo de Dança com Lobos, não foi contado a contento, sendo uma salada mista turbinada de várias coisas que já vimos (um animal com a crina em chamas seria uma referência a Dalí?). Tem coisas legais no filme, como o carismático ator Sam Worthington; o vilão de desenho animado, feito por Stephen Lang; a personagem mais humana do filme, a princesa Neyriti (que não é humana, mas uma na’vi) e a espetacular sequência final. Mas nada disso consegue dar fôlego e empolgação ao filme, coisa que o diretor já conseguiu brilhantemente com seu Exterminador 2. O mundo de Pandora é mesmo deslumbrante (o estúdio Weta, do Peter Jackson, tem uma mão nisso) e o 3D é incrível; não é como o 3D visto até agora em outros filmes, aqui tem uma profundidade de cena jamais vista. Só. Esperar uma década para realizar um filme e se preocupar apenas com a tecnologia, sem privilegiar o roteiro, foi realmente uma pisada de bola de Cameron e isso possivelmente atrapalhará sua ambição de Oscars. O Retorno do Rei ganhou o Oscar de melhor filme, mas a historia já era consagrada. Imaginem a tecnologia de Avatar num filme com um roteiro maravilhoso e criativo como o de Distrito 9! Revolução digital por revolução digital, O Parque dos Dinossauros causou mais impacto, só que Spielberg é um gênio.

Guerra ao Terror


Guerra ao Terror (The Hurt Locker, 2008) é um filme que foi lançado no Brasil em DVD antes até de estrear nos cinemas nos EUA, isso pelo fato de ter sido um filme independente e sem grandes pretensões; já foi visto por muitos e causa surpresa agora o estardalhaço que vem causando por causa dos prêmios importantes que ganhou e que ainda pode ganhar no dia do Oscar. É um filme de guerra muito interessante por trazer um enfoque diferente, aqui predomina o ponto de vista particular do soldado, seus sentimentos, temores, lembranças, mesmo ele estando trabalhando em conjunto com seus companheiros; quando estão sós, estão de fato. A ação também é diferente da de outros filmes de guerra, fora uma ótima sequência de troca de tiros com o inimigo, a ação se concentra no tenso desarmamento de bombas por uma equipe de soldados especialistas nessa tarefa. Cada vez que são chamados quando há uma suspeita de bomba, a tensão até o fim da operação é crescente, e o fato da diretora ter filmado essas cenas sem pressa nenhuma, dá a elas grande veracidade. É interessante e até curioso o trabalho do líder da equipe, o experiente sargento William James, pois ele tem que descobrir as bombas nos lugares mais inusitados e bem escondidos. Particularmente não consegui sentir toda essa tensão, porque como eu via nitidamente que o sargento James era o mocinho da história, sabia que nada de mau lhe aconteceria, mas eu via o nervosismo de quem assistia. Mais em James que nos outros personagens, vemos toda a carga emocional gerada pela guerra; ele é um homem extremamente controlado na sua função e apenas nela, ao ponto de ser insofrível ao constante risco de morte; nessa loucura bem intencionada, ele chega a arriscar a vida de seus companheiros. A diretora Kathryn Bigelow, mais conhecida pelo filme Caçadores de Emoção, conduz o filme com mão forte, usando uma estética de documentário, edição das mais eficazes, e economia de diálogos. Há uma cena particularmente chocante e que leva à emoção, a descoberta, por James, do corpo de um menino com quem ele fez amizade; talvez por vingança contra o sargento, o menino é morto e seu corpo preenchido com bombas (uma armadilha). A reação do sargento é desesperadora, e é aí que a atuação de Jeremy Renner ganha força. O filme é excelente em quesitos técnicos e foi indicado por eles aos Oscars de fotografia, montagem (edição), som, edição de som e trilha sonora. Não é um filme excepcional, mas foi indicado para Oscars mais importantes como filme, direção, ator e roteiro original. Talvez isso se deu devido à importância do tema guerra ao terror para os americanos. Fato interessante: Guerra ao Terror recebeu nove indicações ao Oscar, mesmo número que Avatar, sendo seu concorrente mais direto ao prêmio; isso põe James Cameron numa disputa com sua ex-mulher, Kathryn Bigelow.

Amor Sem Escalas


O filme Amor Sem Escalas (Up in the Air, 2009) começa com o astral lá em cima, com a música da fantástica Sharon Jones, visual bacana e ótima montagem (edição). Mas logo nos deparamos com um assunto nada auto astral, o desemprego. Ryan Bingham, interpretado por George Clooney, trabalha de demitir pessoas; isso mesmo, quando os patrões de uma empresa não tem coragem para demitir seus funcionários, eles contratam a empresa em que Ryan trabalha, que cede esses profissionais da demissão. Parte das pessoas que aparecem demitidas no filme não são atores, mas pessoas demitidas recentemente e isso funcionou bem. Ryan é um homem que fez dos aeroportos sua primeira casa (ele passa apenas quarenta e três dias do ano fora da ponte aérea) e que aprendeu a viver só, deixando tudo que possa fazer peso em sua vida, fora de suas malas. Aliás, ele é um especialista nisso e até dá palestras nesse sentido. Com ele, vamos conhecendo um pouco dos bastidores dos aeroportos. Entre uma viagem e outra, ele conhece Alex, deliciosamente interpretada por Vera Farmiga. Ela pensa igual a ele em relação a aeroportos e relacionamentos. Quando o chefe de Ryan pensa em seguir os conselhos de Natalie, uma jovem funcionaria da empresa (desempenho fraco de Anna Kendrick), que inventa um método mais econômico, embora bastante frio, de demitir pessoas, Ryan fica contra a idéia por dois motivos, primeiro, porque isso irá acabar com sua vida nos ares e, segundo, porque isso vai tornar em gelo um serviço que já é frio. A própria Natalie descobre que lidar com o elemento humano não é tão simples; ela não poderá resolver as coisas de modo “acadêmico”. É uma comédia com toques melancólicos, de humor fino e inteligente, com um elenco bem sincronizado, com destaque para Vera Farmiga, uma mulher muito atraente sob vários aspectos. O trio de atores foi indicado ao Oscar, as duas atrizes como coadjuvantes e George Clooney como ator principal. Sobre George Clooney, vale destacar seu bom tato na escolha das produções em que participa e também seu imenso charme e carisma na tela; ele lembra os galãs do passado ilustre de Hollywood, como se fosse um novo James Stewart. As tomadas aéreas e a edição do filme são pontos positivos. O filme também está indicado para os Oscars de melhor filme, direção e roteiro adaptado, tendo chances apenas no roteiro.

500 Dias Com Ela


O texto do filme explora todo o linguajar e comportamento das fases da paixão, desde o enamoramento até as fases de desespero (não esquecer que paixão vem de pathos e Freud lhe enfatiza mais essa característica). A história mostra o que resulta tantas vezes do envolvimento de uma pessoa romântica com outra avulsa na vida. Ele é simpático; ela é linda. As situações são sinceras e copiam fielmente o prosaísmo da paixão. Ela é dessas pessoas por quem é muito fácil se apaixonar; linda, moderna, livre. Ele é o carente por afeto e facilmente se acostuma a estar junto do seu objeto de adoração, o que o leva à dependência. O apaixonado tem sempre a certeza de que os dois juntos são perfeitos e o outro não vê isso. Até que com a separação e o posterior desapego, ele vê que o outro tinha mesmo razão. Mas antes do desapego há o mau humor, o despeito com outros casais apaixonados; engraçado que o chefe de Tom lhe diagnostica o estado de espírito (tristeza, sofrimento, falta de fé e de motivo para viver); terríveis sintomas de quem sofre de paixão. Com o desapego enxerga-se melhor as mentiras do outro. A avulsa na vida, Summer, aversa a compromissos, casa-se rápido com outro; mostrou-se uma mentirosa, talvez uma mentirosa não apenas para Tom, mas para si mesma. A descoberta das mentiras ajuda na volta por cima e a vida continua. Talvez algo melhor aconteça. Talvez. Pois como disse o filósofo Karl Popper “A certeza não está disponível”. 500 Dias com Ela ((500) Days of Summer, 2009) rende análises psicológicas ao comportamento dos dois personagens; Tom como um sujeito que passa a viver em função de sua amada, e Summer, como alguém que tem dificuldades em se relacionar e aceitar vínculos, e seus motivos para isso, podem ser de diversas ordens e profundidades; quando, no inicio do filme, o narrador diz que ela só adorava duas coisas na vida, seus longos cabelos negros e a facilidade que tinha em desfazer-se deles sem nada sentir, já nos diz muito sobre sua personalidade. O mesmo narrador nos informa que esta não é uma história de amor. Tive justamente essa impressão e ia escrever que esta não é uma história de amor, mas uma história sobre amor; ao escrever este comentário, procurando o pôster do filme para ilustrá-lo, deparei-me com um pôster alternativo que dizia mesmo isso. O visual do filme é bacana (o diretor Marc Webb tem longa experiência em dirigir vídeos) e tem boas sacadas como a homenagem a Bergman e a divisão da tela em expectativas/realidade; há um momento em que as expectativas acabam só restando a dura realidade. Depois do belo, mas também árduo Verão (Summer), eis que surge uma esperança de refrigério com o Outono (Autumn). Boa trilha sonora, com destaque para a linda canção francesa “Quelqu'un m'a dit" na voz de Carla Bruni.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Preciosa




Dezesseis anos, negra, obesa, atrasada na escola, grávida pela segunda vez do pai e tratada como um animal: esta é Claireece Precious Jones, a Preciosa. Isso tudo já sabemos logo no começo do filme. Quando coloquei "negra" nesta triste enumeração, não foi sem propósito, considerando-se tudo que envolve ser negro nos EUA, ainda mais no Harlem de 1987. Temos imediatamente a incomoda certeza de que preciosa não terá um bom futuro e isso é um mérito do filme. Ela é abusada pelo pai desde os três anos de idade e isso com o conhecimento da mãe (o que nos faz entender logo o motivo do ódio da mãe por ela, embora isso seja revelado no final como uma surpresa) e essa mãe a trata com uma hostilidade já banal (isso é perfeitamente possível, não é coisa de ficção), além de lhe entupir de comida e tentar desencorajá-la a ir à escola, sempre lhe dizendo que isso não adianta de nada e que ela não tem futuro. Podemos interpretar essas ações da mãe como uma forma de estancar as possibilidades de Preciosa; possibilidades de beleza, de expectativas futuras, de modo que fique sempre dependente dessa mãe. Outra camada de leitura também faz-nos crer que este comportamento da mãe não é só para incutir na filha que ela é um nada, mas, também, que é apenas uma mãe transmitindo à filha uma "miseducation", já que a mãe tem as características da filha, negra, obesa, ignorante e quem sabe pelo que terá passado na vida. A ignorância é um dos aspectos mais tristes do filme; é muito comovente ver Mary, mesmo ela sendo uma mãe terrível, responder sobre a possibilidade de estar com HIV "Não. Nunca fizemos anal, por isso eu sei" (há de se levar em conta que nessa época a desinformação sobra a AIDS era geral). Essa "miseducation" acaba transmitida a todos na casa, à Preciosa e à sua irmã (que tem um cabelo inacreditável); quem pode ter raiva de Preciosa quando ela mesma se refere à filha pelo apelido de "Mongo" pois a menina é "mongolóide" (Síndrome de Down)? Como Preciosa sobrevive a tudo isso? Ela foge. Nos momentos mais pungentes da sua vida ela refugia-se em sua imaginação, num mundo onde ela é linda, famosa e, sobretudo, amada. É um recurso já utilizado em outras narrativas e que funciona bem aqui. Outra idéia boa foi usar a narração da própria Preciosa para nos contar sua vida; esta narração é solta, feita sem organização, ela fala quando acha que deve e isso dá um gosto bom de verdade ao filme. Um momento marcante que mostra bem esses recursos reunidos à fuga e à narração, é na briga mais violenta do filme, onde Preciosa tem de reagir pela primeira vez, para salvar o filho recém-nascido da fúria da mãe; durante essa briga, imagens de fotografias de mãe e filha pequena são mostradas; elas estão felizes naquele passado; achei um momento brilhante. Outro momento parecido, só que mostrado com humor, é quando as duas estão vendo na TV o filme Duas Mulheres (ótimo filme de 1960 que deu o Oscar a Sophia Loren); ela refaz a cena do filme com ela e a mãe; a ironia é que o filme mostra a história de uma mãe carinhosa que luta bravamente por sua filha, algo bem distante da dura realidade de preciosa.

É um filme feito por negros (da produção, Oprah Winfrey é uma das produtoras, ao elenco), como uma denúncia, um desabafo; uma forma de dizer – Olhem para nós que ainda hoje agonizamos. Essa coisa de direitos iguais e fim do preconceito não chegou aos nossos ouvidos como deveria –; os negros nos EUA são muito críticos e essa crítica alcança a eles mesmos (isso se vê em qualquer comedy stand up); são inteligentes o bastante para perceber que muito do preconceito vem deles mesmos quando tratam-se como os brancos os tratariam ou quando negam sua imagem, tentando mudar pele, cabelos, roupas e até o corpo, descendo ao último nível contanto que isso seja uma tendência. No filme, tanto Preciosa quanto a mãe sonham-se brancas, louras, magras. O linguajar é bem construído, com todas as gírias e palavrões peculiares aos negros daquela localidade; há um momento em que Preciosa observa uma conversa de sua professora "... falam como nos canais" (canais de TV). O figurino é outro acerto, principalmente o da mãe e o da filha; a caracterização de personagens através do figurino é algo muito importante, esquecido hoje em dia, principalmente em filmes menores. O visual do filme não é bonito, mas isso até o ajuda, mostrando a atmosfera pobre e sufocante em que vivem os personagens; e devemos lembrar que essa é uma produção independente. O ponto fraco do filme foi a pretensão de abarcar vários problemas sérios de uma só vez, sem poder dar conta do recado. Fora os problemas de Preciosa, ainda fala-se de injustiça social e homossexualidade, mas apenas como tentativa de tornar o filme mais sério e importante do que ele é, e o problema da autonegação da imagem não é explorado com a profundidade devida. Deixo para o fim o elenco. Os coadjuvantes estão bem, e as novidades são os cantores Lenny Kravitz como um enfermeiro e Mariah Carey como uma assistente social. Estão no elenco porque são amigos do diretor Lee Daniels. A atuação da Mariah vem sendo elogiada e até premiada; não é uma grande atuação, ela apenas está melhor que no outros filmes que já fez e isso deve ter dado um susto na crítica. A novata Gabourey Sidibe está ótima numa atuação realista como Preciosa. Mas que rouba a cena, numa atuação visceral é Mo'Nique como Mary. O ator é realmente um ser mágico. Emociona ver um trabalho dessa qualidade. Mo'Nique é essencialmente uma comediante, uma pessoa do bem, e nos entrega uma mãe terrível, amarga e violenta ao extremo. Sua cena final é um show de interpretação (me fez lembrar a expressão "criar o filho com as próprias mãos" do livro Grandes Esperanças de Charles Dickens). Já ganhou o Globo de Ouro e tem forte chance no Oscar. Mo'Nique já trabalhou antes com o mesmo diretor no drama policial Matadores de Aluguel de 2005; o nome de sua personagem: Preciosa.

Fui prolixo na resenha porque acho que Preciosa (Precious, 2009) é um filme que precisa ser visto devido a sua seriedade. Ele toca em feridas que fingimos que dói somente nos outros.
Obs: os cartazes do filme são ótimos.

Precioso


Michael Oher, chamado Big Mike (Quinton Aaron), é um jovem negro e pobre, que foi praticamente adotado por uma família rica, especialmente pela mãe, Leigh Anne Tuohy, (Sandra Bullock), obtendo dela um lar, carinho e até um carro de presente, isso tudo em pouquíssimo tempo. O título desse filme bem que poderia ser Um Sonho Impossível, devido à pouca possibilidade de uma história semelhante acontecer com frequência. Mas chama-se Um Sonho Possível (a velha tradição de péssimos títulos em português, se bem que o título original também não é grande coisa, é como se representasse apenas uma vírgula de um volume escrito) e é justamente a pouca possibilidade de tal história acontecer, que dá ao filme o aspecto de puro clichê, coisa que deve ser totalmente perdoada, já que se baseia numa história verídica (fato revelado no final), acontecida tal e qual como no filme; a menos que se reclame que a vida seja um clichê. O filme em alguns momentos lembra Preciosa, mas numa versão muito leve. O protagonista também é negro, obeso, fechado e tem dificuldades na escola. Ele tem um instinto de proteção que é voltado para os outros em vez de para si mesmo. Michael é um jovem especial, dessas pessoas cujo meio adverso não consegue corromper; ele é doce quando o treinador o quer agressivo; se não fosse sua doçura, talvez nunca tivesse tido as oportunidades que a vida lhe concedeu. Há uma referência no próprio filme, ao touro Touro Ferdinando, personagem do livro de Munro Leaf, um jovem e pacato touro que vive a cheirar flores em vez de estar numa arena como bravo touro; o livro é de 1936, primeiro ano da guerra civil na Espanha, e traz Ferdinando como símbolo pacifista. A história virou um famoso curta metragem da Disney. No filme, Michael seria Ferdinando e seu treinador o toureiro ávido por agressividade. Leigh Anne é uma senhora rica e anglicana, que parece ter descoberto repentinamente que o mundo é cheio de desigualdades; ela às vezes chega a ser ingênua, fazendo perguntas a Michael cujas respostas já parecem bastante óbvias. Leigh Anne é bastante simpática e alto astral; é através dela que consegui, pela primeira vez, entender algo sobre futebol americano; e depois ela entende que Michael mudou sua vida mais que ela a dele. É um filme tipicamente norte americano, com uma história edificante e sentimental, o tipo que desagrada muita gente que só entende que um filme é sério se ele pesar muito no drama. Feito para agradar, o filme vai ser sucesso onde estiver em cartaz. O elenco é eficaz, tendo destaque Quinton Aaron e o ótimo jae Head, como S. J., o pequeno filho de Leigh Anne. Quanto a Sandra Bullock, ela está linda e loura, num papel que junto com o do filme A Proposta, reergueu sua carreira, algo que aconteceu com Julia Roberts, quando ficou loura e fez Erin Brockovich. Não considero uma atuação para ganhar Oscar, mas também não deixa de ser uma ótima atuação, que pode parecer superficial, mas é justamente aí que é ótima, pois a personagem foi feita para passar isso mesmo, escondendo sempre suas emoções; então se ela consegue passar essa superficialidade e percebemos que no fundo ela não é superficial, é uma ótima atuação. Bela história, feita para emocionar sim, mas isso não lhe tira mérito nenhum.

Águas calmas são profundas


Viena, na Áustria. Erika Kohut. Uns quarenta anos. Exímia pianista. Erudição versus decadência. Luxo e lixo são distintos apenas por duas vogais. Beethoven. Bach. Schubert. Schubert. Schubert. Peso. Sentimentos calados. Prazeres velados. Prazeres peculiares. Perversão. Fetiches. Voyeurismo. Masoquismo. Automutilação. Amor dolente.

Do romance “A Professora de Piano” (dessa vez a tradução brasileira acertou), de 1983, da vienense Elfriede Jelinek, Michael Haneke, faz um sublime estudo psicológico de uma mulher que em vez de seguir uma brilhante carreira de pianista, acomoda-se como professora do Conservatório de Viena. Talvez por que seus valores sejam diferentes. Filme maravilhoso. Identifico-me em alguns momentos. A atuação de Isabelle Huppert (premiada em Cannes) é assombrosa, conseguindo ser devastadora mesmo minimalista. Um feito conseguido por poucos atores. Seu companheiro de cena, Benoîte Magime, também ganhou melhor ator em Cannes. A Professora de Piano (La Pianiste, 2001) é um dos meus filmes favoritos.

A autora do romance, ganhadora de um Nobel de Literatura, tem o rosto congelado como o de Erika, e o romance é autobiográfico. Lendo trechos de sua obra na revista de cultura Agulha, comparo-a com a nossa Hilda Hilst, só que com cores políticas. Suas fortes obras ainda não foram editadas no Brasil e pelo forte teor, mesmo na Europa a autora é pouco conhecida e divulgada.

My Blueberry Nights


Um Beijo Roubado (My Blueberry Nights, 2007) é o primeiro filme falado em inglês do grande diretor, Won Kar-Wai, e ele volta a falar de amor e pessoas perdidas em volta desse sentimento, não com a mesma maestria de seus outros filmes, mas ainda assim faz um bom trabalho. Suas marcas ainda persistem, como suas cores (em especial o vermelho), o neon, o metrô e o bom uso da trilha sonora, aqui com a própria Norah Jones e grandes lendas como Otis Redding. O elenco tem nomes consagrados como Jude Law, Natalie Portman, David Strathairn, Tim Roth e Rachel Weisz, mas eu destaco a iniciante Norah Jones, que está tão boa como se sempre tivesse atuado, ao ponto de esquecermos de que quem está ali é a famosa cantora. O diretor conta sua história com delicadeza e sensibilidade, ajudado por enquadramentos incomuns e sua câmera sub-reptícia.
Curiosidade: O blueberry do título original é o nome inglês para o mirtilo, fruto do arbusto de mesmo nome, de cor azul-escuro. Esse arbusto é típico das florestas temperadas da Europa, em regiões de inverno rigoroso. A última imagem é do mirtilo, que pus aqui como ilustração.

3 Macacos





Abaixo, obras de Caspar David Friedrich, para comparação





Um filme cujas principais características são a dureza e o silencio. Um filme sobre moral com peonagens sem moral. Uma mentira e seus trágicos resultados. A ação concentra-se numa família traumatizada com a perda do filho mais novo e que prefere ignorar o fato, não olhando, falando ou querendo ouvir falar dele; isso explica o título do filme, uma referência aquela famosa imagem dos três macaquinhos proverbiais, tapando olhos, boca e ouvidos. A casa em que vive a família, parece um órgão contíguo a ela; é pobre, escura e silenciosa. Como os diálogos são poucos, o texto é dito nas expressões dos personagens, e isso funciona bem devido à boa qualidade dos atores, em especial a figura interessantíssima da atriz Hatice Aslan. Apesar de não haver nenhuma tragédia no filme, o sentimento dela é transmitido através dos personagens e da fotografia. A fotografia lembra telas de Caspar David Friedrich, com seus céus nebulosos, céus que parecem denunciar os personagens. 3 Macacos (Üç Maymun, 2008) ganhou a Palma de Ouro de melhor direção em Cannes e, mesmo assim, divide a crítica. Talvez por culpa do roteiro que vai seguindo bem até se tornar rasteiro, justamente no final, mostrando que esta família não aprendeu nada com seus erros.