sábado, 25 de fevereiro de 2012

L’Apollonide

A inspeção médica

A inspeção médica segundo Toulouse-Lautrec 

Toulouse-Lautrec 

Toulouse-Lautrec 

Toulouse-Lautrec 


Judith I, de Gustav Klimt









L’Apollonide – Os Amores da Casa de Tolerância (L’Apollonide – Souvenirs de la Maison Close; França, 2011).

O título original do filme diz “Memórias do Bordel”; se nos apegarmos à palavra ‘souvenirs’ isoladamente, chegaremos a um sentido mais fiel do significado da vida das mulheres retratadas no filme. O Romantismo do título traduzido e do clima de todo o filme, ajudado pela fotografia, são bem-vindos, ainda que não combine muito com aquela realidade e com nenhuma outra realidade quando o assunto é prostituição; Realismo, movimento que já imperava àquela altura (fim do século XIX), combina mais com a situação. Me desculpem essa minha mania de semântica, mas amo a riqueza das palavras e elas não nomeiam as coisas em vão ou sem cuidado; atentem para a palavra ‘tolerância’ no sentido usado pelo título brasileiro e vejam quão longe podemos ir.

O filme, que disputou a Palma de Ouro em Cannes, é um painel de tipos femininos, alguns idealizados, outros inspirados abertamente na obra de Toulouse-Lautrec e na Art Nouveau. Pessoalmente encontrei mais semelhança nas telas de Gustav Klimt, onde as mulheres são um tipo sensual de anjo ou pitonisa. O próprio nome de algumas lhes diz suas características; há, por exemplo, a Boneca, Caca e a Mulher que Ri. A boneca tem esse nome por imitar uma linda boneca a qual menininha nenhuma jamais brincará com ela, em vez disso, brincarão homens lascivos e aborrecidos, que não tem mais o que fazer ou inventar para passar seu tempo; em um momento, enquanto é possuída, a jovem, tão acostumada com a situação, mostra cansaço e se entrega de vez ao personagem, ficando por um tempo sem vida, alheia a tudo até que um escape lhe aparece, um inseto que passeia pelo espelho da cama, ela fixa nele o olhar e parece mergulhar no mundo da pequena criatura. A Mulher que Ri tinha outro nome, Madeleine (uma Madalena), até o momento de viver sua tragédia particular, ser desfigurada como um coringa, não por um amante bruto e estranho, mas por um que era belo, meigo e tinha sua confiança, o que tornou tudo mais doloroso. A personagem da Mulher que Ri é o mais explorado e o mais trágico, seja pela profunda tristeza, pela violência e pela perversa ironia de rir de tudo quando por dentro é choro; A Mulher que Ri abre e termina o filme como uma síntese do que uma mulher da vida se torna, um ser sonhador, mas sem esperança, uma poesia, mas grotesca, e um ser humano, porém muito mais objeto; talvez algum tipo de ornada ânfora, onde homens despejam suas impurezas até um ponto em que o vaso transborda por todos os lados. Alguns momentos do filme são fracos e um pouco arrastados, repetindo suas voltas, já sem ter mais o que dizer, e a trilha sonora usada sem muita habilidade; mas palmas ao diretor por ter mantido nas personagens duas coisas importantes, primeiro, o sonhar com uma situação melhor, mesmo que esse sonho seja exatamente o que a palavra diz, sonho; segundo, o espírito conformado que elas tem, elas são putas e sabem o que isso significa. Mas ser puta não significa que sejam menos humanas que outras mulheres, então ficam profundamente abaladas quando leem um artigo ‘científico’ que não apenas compara seus cérebros e tamanho da cabeça com os de bandidos, mas que as rebaixa a criaturas desprovidas de intelecto, idiotas até. Outra situação bem trabalhada é a visita do médico (conforme tela de Lautrec); elas não apenas temem o diagnóstico, visto que vivem à mercê de todo tipo de doenças ou de gravidez, mas elas também mostram grande desconforto em ter seus sexos explorados por um homem que não seja um cliente, mostrando que elas tem sim pudor; escancaram-se para os clientes, mas eles são parte do ‘comércio’.

Em um momento, elas saem do bordel, vão banhar-se em um rio e agora são apenas crianças felizes, ninfas travessas, prisioneiras que tiveram direito ao banho de sol. No fim do filme, atrás da Madame, uma sazonada rosa perde sua pétala, numa metáfora perfeita do chegar da decadência. Ainda no fim, a cena muda e vemos o bordel olvidado já nos dias atuais, como se aquelas vivencias todas fossem apenas lendas passadas. Se terminasse aí já estaria de bom tamanho, mas então surgem as mesmas atrizes vestidas como as prostituas modernas, em seu ponto na estrada, acenando para um carro, dando continuidade ao métier; sentindo por dentro aquela dor de existir, lembrança atávica da mais antiga (dizem) das profissões.


O diretor Bertrand Bonello é um nome que promete, pois tem já no currículo os interessantíssimos O Pornógrafo e Tirésias. Ele usa elementos literários em seus filmes, vide o mito do adivinho mor, Tirésias, e nesse L’Apollonide se inspira em Vitor Hugo para compor a personagem mais interessante, A Mulher que Ri. Vitor Hugo tem uma novela de 1869, chamada O Homem que Ri (já adaptada para o cinema em 1928); fala de um herdeiro de ducado que, sequestrado a mando de um rei, tem depois o rosto desfigurado num terrível sorriso; acaba como famosa atração de circo (a mulher do filme também se prestou a isso, só que em outro ambiente); uma frase da novela que cabe no filme é "Já não tenho inimigos quando eles são infelizes”. 

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