terça-feira, 3 de abril de 2012

Onde estavas tu, quando eu lançava os fundamentos da terra? Quando juntas cantavam as estrelas da manhã e todos os filhos de Deus bradavam de júbilo? (Jó cap. 38, vers. 7-4.)


Na tela de 1812, Tempestade de Neve: Aníbal e o seu Exército Atravessando os Alpes, o pintor William Turner, mostra o quão pequeno é homem diante da natureza. Mal vemos o séquito cartaginês que se apresenta em esboço; sombras de homens e animais jazem e até um animal de grande porte, como o elefante, aparece pequenino ao fundo, sendo percebido apenas pela tromba erguida. O que preenche realmente a tela com fúria portentosa é a grande borrasca, a avalancha que toma penedos e encostas alcantiladas; os nimbos densos apagam os topos dessas elevações e o próprio sol fica tímido, mostrando-se sombrio diante dos remoinhos de neve.



A família como uma árvore

Em A Árvore da Vida (The Tree of Life, EUA, 2011) o diretor, Terrence Malick, também mostra como o ser humano, apesar de peça importante no palco da vida, é pequeno diante da natureza e esta, por sua vez, é pequena diante de todo um universo criado por Deus. É talvez o filme mais religioso que já vi, apesar de não ser bíblico, e funciona como uma emocionante aula sobre a grandeza divina, um obra que reverencia o Criador e tanto as imagens (entre elas umas chama que me lembra a sarça de fogo ardente) quanto a trilha sonora contribuem para isso. Abrir o filme citando o livro de Jó já é uma forma poderosa de introduzir a obra. Assim como nas telas de Turner, as películas de Malick deleitam pela qualidade e grandiosidade das imagens, Turner impressionando com sua perícia no uso da cor e da luz, Malick com a impecável fotografia (elemento também de cor e luz). Claro que não comparo as qualidades artísticas dos dois e sim a intenção de ambos que é um forte e imediato efeito geral de uma cena. Também não compararei Terrence Malick com Stanley Kubrick, isso é besteira; compararei, todavia, seus filmes A Árvore da Vida e 2001 – Uma Odisséia no Espaço. Em ambos os filmes o uso da imagem é grandioso (Douglas Trumbull, o supervisor de efeitos visuais do filme, foi o mesmo de 2001), imagens tão eloqüentes que passam tudo sem precisar de diálogos, isso se vê tanto na abertura de 2001 quanto na sequência que mostra a formação do mundo e da vida na Árvore da Vida (de tão bela lembra um dos prólogos do Lars von Trier); ambos os filmes tratam da evolução da vida e do sentido desta; ambos mostram-se tão claros quanto enigmáticos nas sequências finais (ambos mostram o personagem principal deparando-se com ele mesmo e suas fases, dando significado a um todo que aparentemente não tinha sentido quando isolado em partes).

Além da esplêndida sequência da criação, acompanhamos uma partícula da vida numa família americana de classe média, onde uma mãe amorosa e um pai consciencioso cuidam de sua prole com amor e com um instinto de preservação da espécie admiráveis; aqui o diretor reforça constantemente a importância da família (há, por exemplo, constante ênfase na imagem da aliança na mão do pai de família), na figura protetora e propositalmente severa do pai, no amor além do humano da mãe, na solidariedade dos irmãos. Pequenas criaturas que são, se desnorteiam com fatos simples (como a morte) para o ser criador. Malick, formado em Filosofia em Harvard, põe no personagem do jovem Jack, o primogênito, (vivido com brilho pelo jovem Hunter McCracken), primogênito dos O’Brien, uma fusão de emoções, concentrando nele temas como ciúme, complexo de Édipo e Natureza versus Graça: “As freiras ensinaram-nos que há dois caminhos na vida. O caminho da natureza e o caminho da graça. Temos de escolher aquele que seguiremos. A graça não procura agradar a si própria. Aceita ser desprezada, esquecida, malquerida. Aceita insultos e machucados. A natureza procura apenas agradar a si própria. E que os outros lhe agradem também. Gosta de comandá-los. De impor a sua vontade. Procura razões para estar infeliz, quando o mundo inteiro brilha ao seu redor e o amor sorri através de todas as coisas. Elas ensinaram-nos que ninguém que escolha o caminho da graça terá um final infeliz.” É uma obra altamente sugestiva e sensorial, o que causa estranheza e desconforto no público não acostumado com obras mais complexas; lembro que na sessão em que o vi, todos chiaram e torceram muito para o filme acabar logo; para azar deles, e sorte minha, o filme é muito longo; note-se que minha sessão foi num multiplex, em pleno domingo, com um público esperando ver um filme quiçá de guerra (uma imagem do trailer evoca isso) com Brad Pitt. Em Cannes o júri decidiu lhe dar Palma de Ouro mesmo sentindo um pouco da estranheza que o grande público sentiu; talvez o motivo do prêmio máximo tenha sido não só o deslumbre estético mas, também, porque depois de tantos filmes pesados na seleção deste ano, como Snowtown, eles tenham se aliviado e emocionado com um filme que mostra que a vida segue religiosamente seu curso, soberana e indiferente às dores humanas.

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