terça-feira, 29 de junho de 2010

“Onde estaríamos sem nossas infâncias sofridas!?”





O filme, Correndo com Tesouras (Running with Scissors, 2006), é uma da adaptação do livro autobiográfico de Augusten Burroughs. Nos anos 70, o jovem de 13 ou 14 anos vive em uma família de classe média composta por um pai alcoólatra e uma mãe com transtorno bipolar. A mãe, Deirdre, é uma poetisa que sonha com a fama e com a publicação de suas poesias. Desde criança, a mãe nunca deu uma criação convencional a Augusten, não fazendo questão, por exemplo, que ele fosse à escola. Com o agravamento contínuo das brigas, o casal vai a um especialista, que não sabemos quem indicou à mãe. Entra em cena o médico de almas, tão grave quanto hilário. Lembram da doutora Perci, do Toma Lá, Dá Cá? Bem, Miguel Falabella deve ter visto esse filme para criar a personagem, pois os métodos dos dois especialistas são iguais: a terapia do confronto. Ele arruína a psique dos que estão aos seus cuidados. O psicólogo diz tudo à queima roupa. Quando a mãe diz “Eu fracassei como esposa e como mãe”, ele diz rápido e taxativo “Sim, fracassou”; ela faz uma cara de surpresa, pois nunca esperaria essa resposta de um profissional que está ali para lhe confortar; o resultado é hilário. Em outra cena, quando o filho pergunta “O que há por trás daquela porta?”, o médico responde “É uma sala adjacente, onde me masturbo”, e ele está falando a verdade. A casa do médico é tão terrível quanto aos moradores do que quanto à bagunça, enfim, um ambiente sujo e caótico. Uma galeria de personagens malucos é apresentada e todo tipo de absurdo acontece. A mãe está totalmente submetida às vontades do médico e Augusten é obrigado a morar nessa casa por um tempo, e é aí que começa a escrever diariamente sobre seu padecimento nesse manicômio. A filha mais velha do médico, Hope, é a preferida do pai e ele diz isso abertamente, para desconforto da mais nova. Todos estão, por causa do médico, impregnados de psicologia, e a linguagem que usam é técnica; em um jantar, por exemplo, as irmãs brigam verbalmente o os termos usados são “fuga”, “transferência”, “Você nunca chegará à anal, estará sempre na oral” (referência às fases oral, anal e fálica ou genital ou, ainda, da libido de Freud); todos no filme provocam raiva no próximo, mas quando há uma reação, dizem “não transfira sua raiva para mim” (vou começar a agir assim, rsrsrs.). A gata da família chama-se Freud; ela diz que sonhou que vai morrer, e isso é só o começo. Para o médico, que prescreve remédios como que para suas cobaias, uma pessoa fica adulta aos treze anos e isso dá a essa pessoa total autonomia sobre sua vida; imaginem o que acontece! Também há espaço para descobertas sexuais, a mãe é bi, Augusten é gay (ele encontra um companheiro no filho mais velho do médico; curiosidade: eles vão a um festival de filmes da pouco conhecida diretora Lina Wertmuller). Lá pela metade do filme, acontece algo que temíamos, começamos a perceber que debaixo de todo absurdo, os dramas dos personagens são verdadeiros, duros e profundos, e não achamos mais tanta graça das situações, isso seria rir da miséria alheia. A personagem com mais cara e comportamento de louca, Agnes, esposa do médico, revela-se talvez a pessoa mais sã de todos, absorta em si mesma; talvez ela tenha percebido que “quando não encontramos o que procuramos por tanto tempo, talvez seja porque esteja em outro lugar”. Ela percebe que Augusten ainda tem salvação e investe nele no sentido de tirá-lo desse hospício; ela acha nele um afago à sua sede de família normal e isso é recíproco da parte dele. Ele sente falta de regas e limites, e acaba tendo que decidir-se por uma fuga rumo à vida. Agnes é feita pela atriz Jill Clayburgh, numa interpretação comovente. Filme e personagens tem um clima que lembra Os Excêntricos Tenenbaums, só que mais louco ainda. Enfim, um forte drama disfarçado de comédia; ou então sem disfarce nenhum, já que parece ser comédia pelo absurdo das situações, mas são absurdos reais; então a vida tem mesmo seu teor de comédia, e comédia de humor-negro. Além da Jill Clayburgh, o ótimo elenco conta com Annette Bening, Brian Cox, Joseph Fiennes, Evan Rachel Wood, Alec Baldwin, Joseph Cross e Gwyneth Paltrow. A trilha sonora cabe no filme com uma luva, terminando com a belíssima Stardust, cantada por Nat King Cole. 

Um comentário: