sexta-feira, 19 de março de 2010

"A harmonia pode ser quebrada por um sussurro"






Tanto o filme, A Época da Inocência (The Age of Innocence, 1993), como o romance original de Edith Wharton (vencedor do Pulitzer de 1921 e já adaptado duas vezes antes para o cinema, em 1924, versão muda, e em 1934), fazem uma densa crítica à sociedade americana do século XIX, focando especialmente a “aristocracia” da Nova York daquele tempo; uma sociedade avara em virtudes, onerosa em futilidades. O desejo constante de aparentar o que não eram, almejando similitude com a aristocracia européia, tornava-os nobres fictícios e ridículos genuínos. Não raro essa burguesia com ares aristocratas via-se frustrada, sendo a frustração um sentimento que sempre causa nada menos que uma infelicidade conformada. Essa sociedade tentou, sem muito êxito ou com êxito apenas aparente, emular os nobres que eles, burgueses, tiraram do poder, coisa que sempre acontece. Martin Scocerse retrata tudo isso com muito esmero e o filme dá gosto de ver, pela beleza de cenários e figurinos, numa reconstituição de época primorosa. O elenco principal está excelente, Daniel Day-Lewis como Newland Archer, um homem dono de uma paixão tão forte quanto pusilânime; Winona Ryder como May, a esposa convenientemente ingênua; e Michelle Pfeiffer (especialista em personagens sofridas) como Olenska, uma mulher que sacrifica tudo menos a integridade de sua consciência. A condessa Olenska tem a coragem (devido à época) de separar-se de seu marido, um nobre europeu. De volta da Europa, ela tem fria e hipócrita recepção da sociedade nova-iorquina; não a querem receber; sua família manda convites que recebem o declínio de todos, e a situação só reverte-se em favor da condessa quando uma nobilíssima casa decide interferir e fazer a própria festa de recepção da condessa; mesmo considerando má coisa receber a divorciada, essa sociedade considera coisa muito pior não aparecer em festa de casa tão solene. Tudo isso é mostrado com uma beleza e requinte altíssimos. Para definir o desquite, o advogado responsável é o mesmo que tomou partido no caso da recepção à condessa e é, também, o marido de sua prima May. Newland Archer é um romântico estagnado, que vê na atitude da condessa não apenas romantismo, mas coragem e fuga; não demora para que se apaixonem, fazendo brotar mãos ávidas para descortinar o pano da tragédia. Tudo é narrado pela grande Joanne Woodward, de as Três Máscaras de Eva. Este é um filme muito especial na história do cinema e na cinebiografia de Martin Scorsese, que consegue, mais uma vez, fazer um belo estudo de sua querida Nova Iorque. A obra é cheia de sutilezas e a cada vez que a vemos percebemos novas nuanças, pois os detalhes, em todos os níveis, são tão ricos quanto implacáveis. Os maravilhosos diálogos tem cores escarlates de tão brutais, evidenciando a crueldade do romance, em cenas como a do píer; Antônio Abujamra chegou a afirmar sobre o filme “Nada mais violento sem mostrar a violência”. A época era a da inocência, destruída pelas mãos em luva de seda das convenções sociais. Ganhou o Oscar de figurino e o Globo de Ouro de atriz coadjuvante para Winona Ryder. Magnífico filme.

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