segunda-feira, 1 de março de 2010

Preciosa




Dezesseis anos, negra, obesa, atrasada na escola, grávida pela segunda vez do pai e tratada como um animal: esta é Claireece Precious Jones, a Preciosa. Isso tudo já sabemos logo no começo do filme. Quando coloquei "negra" nesta triste enumeração, não foi sem propósito, considerando-se tudo que envolve ser negro nos EUA, ainda mais no Harlem de 1987. Temos imediatamente a incomoda certeza de que preciosa não terá um bom futuro e isso é um mérito do filme. Ela é abusada pelo pai desde os três anos de idade e isso com o conhecimento da mãe (o que nos faz entender logo o motivo do ódio da mãe por ela, embora isso seja revelado no final como uma surpresa) e essa mãe a trata com uma hostilidade já banal (isso é perfeitamente possível, não é coisa de ficção), além de lhe entupir de comida e tentar desencorajá-la a ir à escola, sempre lhe dizendo que isso não adianta de nada e que ela não tem futuro. Podemos interpretar essas ações da mãe como uma forma de estancar as possibilidades de Preciosa; possibilidades de beleza, de expectativas futuras, de modo que fique sempre dependente dessa mãe. Outra camada de leitura também faz-nos crer que este comportamento da mãe não é só para incutir na filha que ela é um nada, mas, também, que é apenas uma mãe transmitindo à filha uma "miseducation", já que a mãe tem as características da filha, negra, obesa, ignorante e quem sabe pelo que terá passado na vida. A ignorância é um dos aspectos mais tristes do filme; é muito comovente ver Mary, mesmo ela sendo uma mãe terrível, responder sobre a possibilidade de estar com HIV "Não. Nunca fizemos anal, por isso eu sei" (há de se levar em conta que nessa época a desinformação sobra a AIDS era geral). Essa "miseducation" acaba transmitida a todos na casa, à Preciosa e à sua irmã (que tem um cabelo inacreditável); quem pode ter raiva de Preciosa quando ela mesma se refere à filha pelo apelido de "Mongo" pois a menina é "mongolóide" (Síndrome de Down)? Como Preciosa sobrevive a tudo isso? Ela foge. Nos momentos mais pungentes da sua vida ela refugia-se em sua imaginação, num mundo onde ela é linda, famosa e, sobretudo, amada. É um recurso já utilizado em outras narrativas e que funciona bem aqui. Outra idéia boa foi usar a narração da própria Preciosa para nos contar sua vida; esta narração é solta, feita sem organização, ela fala quando acha que deve e isso dá um gosto bom de verdade ao filme. Um momento marcante que mostra bem esses recursos reunidos à fuga e à narração, é na briga mais violenta do filme, onde Preciosa tem de reagir pela primeira vez, para salvar o filho recém-nascido da fúria da mãe; durante essa briga, imagens de fotografias de mãe e filha pequena são mostradas; elas estão felizes naquele passado; achei um momento brilhante. Outro momento parecido, só que mostrado com humor, é quando as duas estão vendo na TV o filme Duas Mulheres (ótimo filme de 1960 que deu o Oscar a Sophia Loren); ela refaz a cena do filme com ela e a mãe; a ironia é que o filme mostra a história de uma mãe carinhosa que luta bravamente por sua filha, algo bem distante da dura realidade de preciosa.

É um filme feito por negros (da produção, Oprah Winfrey é uma das produtoras, ao elenco), como uma denúncia, um desabafo; uma forma de dizer – Olhem para nós que ainda hoje agonizamos. Essa coisa de direitos iguais e fim do preconceito não chegou aos nossos ouvidos como deveria –; os negros nos EUA são muito críticos e essa crítica alcança a eles mesmos (isso se vê em qualquer comedy stand up); são inteligentes o bastante para perceber que muito do preconceito vem deles mesmos quando tratam-se como os brancos os tratariam ou quando negam sua imagem, tentando mudar pele, cabelos, roupas e até o corpo, descendo ao último nível contanto que isso seja uma tendência. No filme, tanto Preciosa quanto a mãe sonham-se brancas, louras, magras. O linguajar é bem construído, com todas as gírias e palavrões peculiares aos negros daquela localidade; há um momento em que Preciosa observa uma conversa de sua professora "... falam como nos canais" (canais de TV). O figurino é outro acerto, principalmente o da mãe e o da filha; a caracterização de personagens através do figurino é algo muito importante, esquecido hoje em dia, principalmente em filmes menores. O visual do filme não é bonito, mas isso até o ajuda, mostrando a atmosfera pobre e sufocante em que vivem os personagens; e devemos lembrar que essa é uma produção independente. O ponto fraco do filme foi a pretensão de abarcar vários problemas sérios de uma só vez, sem poder dar conta do recado. Fora os problemas de Preciosa, ainda fala-se de injustiça social e homossexualidade, mas apenas como tentativa de tornar o filme mais sério e importante do que ele é, e o problema da autonegação da imagem não é explorado com a profundidade devida. Deixo para o fim o elenco. Os coadjuvantes estão bem, e as novidades são os cantores Lenny Kravitz como um enfermeiro e Mariah Carey como uma assistente social. Estão no elenco porque são amigos do diretor Lee Daniels. A atuação da Mariah vem sendo elogiada e até premiada; não é uma grande atuação, ela apenas está melhor que no outros filmes que já fez e isso deve ter dado um susto na crítica. A novata Gabourey Sidibe está ótima numa atuação realista como Preciosa. Mas que rouba a cena, numa atuação visceral é Mo'Nique como Mary. O ator é realmente um ser mágico. Emociona ver um trabalho dessa qualidade. Mo'Nique é essencialmente uma comediante, uma pessoa do bem, e nos entrega uma mãe terrível, amarga e violenta ao extremo. Sua cena final é um show de interpretação (me fez lembrar a expressão "criar o filho com as próprias mãos" do livro Grandes Esperanças de Charles Dickens). Já ganhou o Globo de Ouro e tem forte chance no Oscar. Mo'Nique já trabalhou antes com o mesmo diretor no drama policial Matadores de Aluguel de 2005; o nome de sua personagem: Preciosa.

Fui prolixo na resenha porque acho que Preciosa (Precious, 2009) é um filme que precisa ser visto devido a sua seriedade. Ele toca em feridas que fingimos que dói somente nos outros.
Obs: os cartazes do filme são ótimos.

2 comentários:

  1. Daniel, achei sua resenha de Preciosa sensacional! Ela faz jus ao belo filme, tão diferente dos enlatados hollywoodianos que estão nos cinemas desde o início do ano, muitos dos quais concorrendo a Oscars importantes. Este é o primeiro filme da atriz principal. É fantástico ver nascer uma estrela tão brilhante mas, ao mesmo tempo, diferente de todas as que já apareceram - recupera o caráter "mágico" que tem o cinema.
    Parabéns!

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  2. Danilo, digitei seu nome errado - só agora que eu vi... Desculpe!

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