terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

"Julien, tire os sapatinhos..."

Interessante como os filmes de hoje ou até mesmo de três décadas atrás não conseguem transmitir o mesmo vigor e paixão, a mesma delícia dos diálogos, dos clássicos antigos. Um exemplo daquela época de ouro é o filme Os Sapatinhos Vermelhos, um filme adorado por gerações e venerado pelos maiores nomes do cinema, tendo como fã ardoroso o cineasta Martin Scorsese, que supervisionou a restauração do filme. É um filme britânico dirigido pela dupla Michael Powell e Emeric Pressburger, dupla responsável por produções sofisticadas. Considerado o principal filme sobre balé, é um delicioso passeio pelos bastidores de um grande balé, com acurados detalhes na caracterização dos profissionais dessa arte; nada é esquecido, a amizade misturada com disputa, a efeminação de alguns, a disciplina, a exaustão, etc.

O filme gira em torno da Companhia dirigida por Boris Lermontov, que após despedir sua primeira bailarina por esta ter-se casado, põe Victoria Page em seu lugar. Victoria é uma moça que a ama a dança mais que tudo na vida e vê nisso sua grande chance na carreira. Lermontov também contratou recentemente Julien Craster, talentosíssimo compositor, que será o responsável pela nova partitura do balé Os Sapatinhos Vermelhos.
"Sapatos Vermelhos" é uma fábula criada por Hans Christian Andersen sobre uma jovem ávida por dançar que após calçar uns sapatos vermelhos mágicos, é obrigada a dançar sempre, mesmo cansada, pois os sapatos tem vontade própria, não querendo parar nuca; a jovem acaba morrendo. O sucesso do balé é estrondoso e aproxima mais o jovem compositor e a bailarina, para ira do diretor, que não tolera que nada, nem o amor, seja obstáculo a sua arte. Ele não permite romances na sua Cia. por achar que os profissionais devem se dedicar à arte e somente a ela. Ele despede os dois, mas vive amargurado pela perda magníficos artistas. Ele consegue que Victoria volte, mas ela fica dividida entre a dança e amor (escolha visível na própria coreografia dos Sapatinhos Vermelhos), e a escolha, enchendo-a de culpa, dá ao filme um final trágico (que lembra o final do romance Anna Karenina na difícil escolha e no tipo de morte), perfeito em analogia com a fábula. O espetáculo continua, apenas com os sapatinhos dançando sem os pés de sua bailarina.
É um filme todo feito de alusões e de enigmas. A maior alusão, em minha opinião, é de Victoria não com o balé Os Sapatinhos Vermelhos, mas dela como sendo os próprios sapatinhos, já que ela é que não consegue parar de dançar, por mais que isso signifique a infelicidade fora da dança; o maior enigma fica por conta da personalidade de Lermontov, um homem cheio de paixões contidas, aparentemente assexuado, mas que revela muito ciúmes, não sabemos se pela bailarina ou pelo compositor. O elenco do filme é especialíssimo. Os atores principais envolvidos com cenas de dança são antes de tudo bailarinos profissionais e fazem um trabalho de atuação maravilhoso e convincente. A estreante Moira Shearer, como Victoria Page, é fantástica. Outros destaques são Marius Goring, Ludmilla Tcherina, Leonide Massine, Robert Helpmann (grande auxilio dos diretores, como coreógrafo), Esmond Knight e Albert Basserman. Quem brilha infinitamente é Anton Walbrook como o implacável diretor Boris Lermontov. Seu Boris é astuto, malicioso, e muito, mas muito chique e sofisticado atrás de seus óculos escuros, além de esconder bem suas verdadeiras emoções; ele fala com os olhos.
Tecnicamente o filme é uma verdadeira obra de arte, sendo a fotografia o elemento mais famoso do filme nesse quesito. O responsável por ela, um dos maiores nomes do cinema nesse assunto, Jack Cardiff, fez dela um elemento vivo; o jogo de luz e sombras com o colorido dos cenários e da luz interagindo com os personagens é de uma magia suprema. Os cenários em tom pastel são outro ponto alto; o responsável pelo design de produção foi o artista plástico Hein Heckroth, e de modo geral, nos lembra Degas, pelo conjunto, e Renoir, nas particularidades. As cores predominantes do filme são o vermelho e o verde (cores do expressionismo), sendo o verde nos detalhes. Indicado aos Oscars de filme, roteiro adaptado e edição, venceu os de direção de arte e trilha sonora. Durante o filme, vamos nos deliciando com trechos de balés magníficos como O Lago dos Cines e Giselle e há a famosa sequência de vinte minutos do próprio balé Os Sapatinhos Vermelhos; uma cena que levou seis semanas para ser feita e que mistura elementos do teatro e do cinema com alusões nas intenções dos personagens, e elementos externos usados como metáfora, como, por exemplo, o marulho do mar como as palmas da platéia. O artifício desta cena foi imitado em famosos musicais posteriores, mas sem nunca alcançar êxito igual. Pela junção apaixonada de várias artes, este é um filme para os amantes destas. Os Sapatinhos Vermelhos é a obra-prima dos musicais.

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